A ida ao médico ou ao hospital, em particular em caso de urgência, pode ser um desafio enorme para as pessoas com autismo, em especial para as crianças. É natural que nesta situação a família sinta muita apreensão, mais ainda num momento de muitos constrangimentos, impostos pelo facto de vivermos uma situação atípica do ponto de vista de saúde pública.
Mas com um planeamento detalhado e cuidadoso, esta situação pode tornar-se mais fácil e tranquila. Assim, perante a necessidade de recorrer a uma consulta médica ou a uma urgência hospitalar importa estar preparado, antecipando os problemas e as soluções.
Pode ser pertinente tratar esta situação como se fosse uma experiência nova, pois apesar de poder já ter visitado o local (algo que infelizmente no momento atual não poderá fazer antecipadamente), o funcionamento do contexto e a atuação dos profissionais de saúde é diferente num período de pandemia (por exemplo o uso de máscaras de proteção e estratégias de higienização, a implementeção de linhas de separação entre doentes, a possibilidade de isolamento, as alterações no espaço físico, que em termos de infraestruturas quer na intensidade de afluência dos doentes, etc).
Simultanemante, apesar de manifestamente vivermos uma situação de cada vez maior consciencialização da condição, o autismo é ainda pouco reconhecido e as suas características ainda podem ser difíceis de compreender pelos profissionais que irão lidar com a situação. Por esse motivo, pode ser muito importante informar rapidamente os profissionais acerca do funcionamento e personalidade da sua criança e estar preparado para qualquer situação é a melhor solução para o sucesso.
Recomendamos a construção de um documento síntese, que possa ceder ao profissional de saúde responsável, acerca das suas características da sua criança, focando-se nos detalhes que poderão facilitar o seu atendimento em contexto hospitalar (pode incluir a fotográfica caso ela não consiga ainda identificar-se). Faça-se acompanhar deste documento num formato que possa ser cedido e facilmente duplicado.
Descreva brevemente como o autismo pode afetar o comportamento e a comunicação da sua criança; quais as suas capacidades e fragilidades específicas; qual o meio preferencial de processamento da informação (por exemplo, se é mais forte no processamento visual por oposição ao processamento auditivo) e se necessita de mais tempo para o processamento dos estímulos/informação sensorial.
Pode ser necessário incluir nesta descrição aspetos chave do seu perfil sensorial: sensibilidade ao barulho, objetos brilhantes, som dos equipamentos ou utensílios de diagnóstico e como poderá reagir; sensibilidade táctil por exemplo ao toque e que tipo de toque é preferencial para examinar o seu corpo (suave ou forte); sensibilidade oral ou olfativa perante medicamentos. Pode ser necessário explicar como é que ela mostra a sua dor e que tipo de sensibilidade à dor apresenta. Refira os desafios nas competências motoras se presentes.
Assinale se há necessidade de um interlocutor preferencial e do uso das ferramentas de comunicação aumentativa ou alternativa e quais as suas características comunicativas (por exemplo, ao nível de linguagem expressiva e compreensiva, incluindo a interpretação literal das expressões idiomáticas; ou a necessidade de usar uma linguagem simples e concreta e se necessário apoiada visualmente; a necessidade de fornecer informação relacionada com os diferentes passos a realizar, assim como as dificuldades na compreensão de pistas sociais e alterações no contacto visual). Reforce a importância de explicar todos os passos daquilo que é necessário fazer sempre que possível de forma faseada e suportada visualmente.
Indique tiques, estereotipias e comportamento repetitivo (incluindo ecolália) que possam surgir em situações de stress, para que possa explicar o que significam se presentes e sejam corretamente interpretados. Identifique também os sinais de crise emocional e aspetos chave da sua gestão emocional. Assinale o desafio que a criança enfrenta ao lidar com procedimentos/profissionais desconhecidos e o impacto ao nível da autorregulação emocional e comportamental perante mudanças de rotina ou experiências novas. Assinale interesses ou obsessões que possam ser úteis para a manutenção da regulação emocional ou para fomentar maior disponibilidade da criança para os exames físicos ou tratamentos.
Termine com outras informações que considere vitais mas que não possa explicar em situação de emergência na presença da sua criança.
Finalmente, planeie com a sua criança a ida ao hospital, considerando o seu nível de desenvolvimento e capacidade de compreensão. Use suporte visual (clique nas tabelas no final deste artigo) para facilitar a compreensão da situação e reduzir a sua ansiedade. Comunique de forma calma e tranquilizadora sobre os diferentes momentos que irão decorrer e informe acerca do que irá acontecer.
E lembre-se, por mais que prepare cuidadosamente todas as situações haverá sempre imprevistos. Confie em si, mantenha a calma, peça ajuda e comunique assertivamente acerca do que sua criança precisa.
A Dr.ª Regina Pires é Psicóloga Clínica e Coordenadora do Departamento de Psicologia